Para além do filme com imagens de arquivo, a noção de arquivo na génese do acto de filmar. Reunindo autores que muito trabalharam com imagens pré-existentes, e não deixando de lado essa vertente da sua actividade, convidamos à análise de caminhos que alargam e transformam o binómio em causa (imagem e arquivo). A ideia de recolha, colecção, inventário, enquanto retorno a uma origem e, simultaneamente, impulso criador. O arquivo, ou seja, o espaço (re)fundador.
O filme é dedicado a Luca Comerio, um pioneiro do cinema italiano que morreu aos 66 anos em 1940, completamente esquecido e a sofrer de amnésia. O filme é composto por material encontrado num estado de amnésia química (como refere o genérico). Foi na Primavera de 1982 que Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi descobriram este tesouro inflamável que salvaram da destruição. Demoraram cinco anos para compor esta longa viagem pelo começo do século XX, o século do comboio, o resultado e instrumento das suas conquistas, do colonialismo e das guerras. O filme abre com as imagens espantosas de um comboio a percorrer as montanhas Tirolesas. Ao passar pelo primeiro túnel dá-se uma passagem iniciática do preto para o vermelho sangue, depois para o preto-e-branco – o comboio vai conquistando a terra. Um travelling que é prolongado pela imagem de um barco que quebra o gelo da Antártica. Na superfície gelada, um caçador dispara à queima-roupa sobre um urso polar. Atingido, transfixo, cai e volta a levantar-se em toda a sua grandeza para cair logo depois. Violência cometida pelos homens sobre os animais, violência do homem contra o homem. Este é o tema desenvolvido pelos realizadores ao som dos ritmos repetitivos e assombrosos da música de Keith Ulrich e Charles Anderson. Mostram-se aspectos da conquista do mundo, das mentes, dos corpos e das massas; das representações colectivas e dos sistemas de opressão. Sentimos vontade de ver uma e outra vez este filme inesgotável que percorre continentes, com passagem pelas memórias das nossas histórias humanas, comoventes e surpreendentes.
O filme é composto por fragmentos de mais de trinta documentários realizados e exibidos na Alemanha no período que vai de 1933 a 1945. No texto do filme, o realizador diz-nos que “Nunca existiu na Alemanha um momento de iconoclasmo que destruísse esses filmes num acto instintivo de indignação. Os filmes foram confiscados, o que é diferente. Foram guardados, ainda existia um plano para eles. Tal como se fossem reféns resgatáveis, é-lhes permitido sair. Para que isso aconteça tem de ser ter a certeza de que o contexto e o modo cuidadoso como são utilizados os torna inofensivos. Esta é uma das condições para a sua utilização como documento, e enquanto tal, é-lhes confiada uma função dupla. É suposto mostrarem o fascismo tal como era realmente, dizerem-nos o que o fascismo nos dizia na altura. A mesma e velha mensagem. Mas agora uma mensagem de terror. É suposto testemunharem ao mesmo tempo contra si próprios, tal como aconteceria com os agentes desertores que fossem denunciados. Eles falam e é um facto que ainda hoje os percebemos. Não somos confrontados com o balbucio ou a hesitação no falar de uma língua estrangeira que não entendemos. Reside aí outro factor da sua disponibilidade: estes filmes não só sobrevivem a este processo que os converte em testemunhas principais – eles chegam-se à frente para o fazer. Como se este fosse exactamente o seu propósito: desempenhar o papel de evidência documental.”
Feito a partir de imagens de filmes de actualidades e da leitura dos diários parisienses do escritor alemão Ernst Jünger, La Guerre D’un Seul Homme é um filme que se encontra no cruzamento entre a ficção e o documentário e uma das reflexões cinematográficas mais singulares sobre o período da Ocupação nazi em França. Cozarinsky escreveu sobre o filme: “Fazer um filme a partir de citações… citações cujo encontro as faça dizer mais do que aquilo que dizem, um mais que significa outra coisa. Recuso usar a voz da história (‘isto era a verdade’). Prefiro pôr em movimento a ambiguidade das mentiras a fim de restituir o vivido ao momento histórico, sem renunciar à perspectiva que o passar do tempo nos dá sobre esse mesmo momento. Um prazer pessoal: o de parar a imagem em alguns momentos anónimos para tornar visível o gesto de um testemunho sem voz, de uma vítima sem glória.” Na sua crítica ao filme, Pascal Bonitzer considera que “Cozarinsky inverteu – genialmente, não hesito em dizê-lo – o princípio do documentário: aqui são as imagens que constituem o comentário da voz. […] Daí resulta, paradoxalmente, que este filme expressamente baseado em mentiras (pelo menos em dois tipos de mentira: as triviais, da propaganda, e as mais subtis, da literatura) surja como a descrição mais verdadeira, mais rica e a mais cativante da época da Ocupação.”
Em primeiro plano, de perfil, vemos Raphaël, o pai de Yervant Gianikian, a ler um excerto das suas memórias, que vai traduzindo do arménio. Plano fixo de cerca de oito minutos, no qual o filho ocupa um lugar ao fundo da imagem. Impassível e concentrado, ele é o segundo ponto que sustenta este triângulo, sendo o terceiro a câmara, para onde Raphaël olha a um dado momento. É Angela Ricci-Lucci que filma e é, sem dúvida, uma cena de família, em que se relata uma memória que nos conta da passagem da sua cultura original, arménia, à sua cultura adoptada, italiana. Mas mais do que isso, Io Ricordo é sobre a transmissão de uma narrativa de uma geração a outra. Esta narrativa, na forma minuciosa como descreve uma vingança sangrenta, põe em campo duas culturas, arménia e muçulmana, nas quais serviu o pai do realizador, escravo cristão numa comunidade curda. Os três últimos minutos mergulham-nos na atmosfera de recolhimento do mosteiro de Geghard na Arménia soviética, num efeito de ruptura que ganha a dimensão de uma reflexão metafísica: três velas e o canto grave de um amigo é a resposta dialéctica e cristã ao absurdo da violência humana.
Este filme que tem por base o diário do pai de Gianikian, constitui um marco na obra do casal. Mostra através de imagens de arquivos russos a história emblemática do povo arménio. Mas o que é que se vê? 1915: o Cáucaso em chamas, exércitos que desfilam, cenas de luto… Depois volta atrás: São Petersburgo em 1906. O fim de um reino faustoso pressentido através de uma marcha ao mesmo tempo solene e fúnebre. Depois o triunfo do comunismo. Paz aparente na Arménia. 1935, o realismo soviético impõe a sua visão do mundo. Por fim, regresso a 1918: o êxodo dos Arménios do Azerbeijão. Sobre o filme, escreveram os realizadores: “É impossível não recordar as longas esperas e as viagens, por vezes inúteis, para encontrar os materiais para o filme. O desejo de procurar documentos filmados sobre a história dos arménios, dos seus contornos. Eventos transmitidos pelas histórias de família e pelos diários no exílio. Reunir material disperso, espalhado como o próprio povo arménio, em perpétuo movimento. Durante a pesquisa surgiram excertos de filmes perdidos que alargaram o âmbito da ideia inicial. Vêm à luz imagens de acontecimentos históricos em todo o continente russo, escondidos até agora. O arco temporal da preparação e da realização do filme começa em 1987 com uma viagem na Arménia soviética e prossegue depois com um pogrom e um terramoto, em paralelo com o terramoto político na ex-União Soviética. Simbolicamente, no prólogo do filme, num quadro vivo, surge a Santa Mãe Rússia, figurada. Abraça e domina os povos do Cáucaso. Cristãos e muçulmanos estão ajoelhados aos seus pés, mantidos à distância pela sua espada.”
O que pode uma fotografia de um rosto revelar sobre um sistema político? O que pode uma fotografia de um rosto tirada há mais de 35 anos dizer sobre a nossa actualidade? Partindo de um núcleo de fotografias de cadastro de ex-prisioneiros políticos da ditadura portuguesa (1926-1974), 48 procura mostrar os mecanismos através dos quais um sistema autoritário se tentou autoperpetuar. “48 procura, assim, operar na zona entre o que a fotografia mostra e o que ela não revela; mas também entre a analogia e o estranhamento, o enunciado e o vivido, a imagem e a memória. Pois estas fotografias também são tempo: o tempo contido dentro da fracção de segundo em que o preso enfrenta o opositor; o tempo que nos permite entrar dentro do universo enclausurante das prisões políticas e estar dentro do instante onde se cruza o outrora com o agora; um tempo múltiplo que extravasa as noções de passado, presente e futuro.” – Susana de Sousa Dias
“Tout pour moi devient allégorie.” – é com esta citação de Baudelaire que os realizadores começam Nocturne, filmado na antiga Jugoslávia. O filme é composto por três sequências filmadas à noite, fragmentos do quotidiano em que a guerra é invisível. O primeiro mostra uma reunião de ciganos, a segunda um grupo de jovens numa varanda a desempacotar uma aparelhagem e a terceira encerra o filme com imagens de arquivo que mostram uma mulher em imagens lentas e tintadas de azul. Estas cenas apenas se relacionam com a guerra através da sua interpretação alegórica. Os realizadores parecem querer dar a quem vê um grande espaço de interpretação. Os planos dos ciganos a celebrar podem ser lidos quer como imagens de uma minoria perseguida, quer como uma metáfora de uma coexistência pacífica em sociedade. “Je ne vois qu’infini par toutes les fenêtres”, diz uma legenda. Em Nocturne, a vista através de uma janela abre, literalmente, mundos e interpretações infinitas.
Uma colecção de brinquedos de criança feitos de diferentes materiais: madeira, metal, papel, tecido, giz, plástico e cera. O filme engloba o período que vai desde o fim da Primeira Guerra Mundial até aos anos 50. Todos os objectos foram encontrados nas Dolomitas, a cadeia montanhosa dos Alpes orientais no norte de Itália, numa aldeia que até à Primeira Guerra Mundial pertencia à Áustria. Os objectos têm origem na Europa Oriental, Norte de Itália, Rússia e Japão. As características comuns destes objectos de diferentes regiões são evidentes. A colecção é formada por categorias: humana, animal e vegetal, de diferentes tamanhos. A qualidade intrínseca destes objectos reflecte o período histórico que medeia entre o Fascismo, o Nazismo e o pós-guerra. As imagens são vistas através de uma lupa. Através destes objectos enrugados e diminuídos emergem elementos não só de um mundo rural e camponês, de um mundo de trabalho agrícola relacionado com os animais e os bosques, mas também de um mundo de tarefas domésticas relacionadas com a casa e os seus espaços, um mundo de artesanato tradicional e do seu comércio. Distinguimos igualmente elementos de folclore e dos costumes populares e religiosos. Um catálogo de 10.000 brinquedos que sobreviveram a infância destruída pelas duas grandes guerras, a miniaturização de materiais humildes com a sombra ameaçadora do fascismo e do nazismo sempre à espreita. Mas que relação tem o filme com a obra dos realizadores que passaram vinte anos a reescrever a história do século XX através da montagem de arquivos documentais ou privados, denunciando as ideologias fascistas e belicistas sempre à beira da eclosão? Mais uma vez, a tentativa de esquemas redutores, quer sejam sociais, políticos, religiosos através dos brinquedos ‘inocentes’. Foi Roland Barthes que nos lembrou que outras mãos usaram estes jogos, mãos hoje desaparecidas, feridas ou instrumentalizadas pela loucura dos homens.
“Uma partícula de pó é apenas perceptível a olho nu. É o tema mais pequeno acerca do qual se pode fazer um filme – é um meio de desaparecimento e um critério de percepção. Onde quer que vamos, leva-nos a melhor; para onde quer que seja que nos viremos, segue-nos. É o nosso passado, o nosso presente e o nosso futuro. É universal e tem um nome em todas as línguas. Mantém ocupadas as donas-de-casa, bem como os cientistas, inventores, artistas e ramos industriais que a ela se dedicam. Acusam-na de alimentar vermes e causar doenças. Torna-se dona daquilo que é nosso, penetra nos laboratórios, cria planetas e galáxias. Estamos rodeados por ela, está dentro de nós e livramo-nos dela. Aninha-se no desespero da sua própria existência!, escreveu Bitomsky acerca do seu último filme. Ao examinar muitos tipos de pó, incluindo partículas microscópicas invisíveis a olho nu, Staub (Pó) ausculta uma variedade de cientistas – botânicos, biólogos, meteorologistas e astrónomos – que investigam as consequências sanitárias e ambientais do pó, desde as tempestades de areia do Sahara, à dust bowl dos anos 30 no Oklahoma, ao pó tóxico gerado na demolição das torres do World Trade Centre. Os aspectos fenomenológicos, filosóficos e mesmo artísticos da cultura do pó são explorados em entrevistas com artistas e coleccionadores. Ao examinar em detalhe algo que nos rodeia na nossa vida do dia-a-dia, mas ao qual não prestamos grande atenção, Staub dá-nos uma nova apreciação do modo como este afecta o nosso corpo, o ambiente e mesmo o cosmos, permitindo-nos uma outra forma de ver o mundo.
Como se fosse um detective num qualquer film noir, Bitomsky leva a cabo uma investigação através de fotogramas e imagens de filmes, apelando à memória e à revisão dos filmes vistos e por vezes esquecidos e que aqui surgem destacados do exercício por vezes derrisório do ‘excerto’. Torn Curtain (1966) ou Psycho (1960), de Alfred Hitchcock, Une Chambre en Ville (1982), de Jacques Demy, Kiss me Deadly (1955), de Robert Aldrich… ou filmes de Série B menos conhecidos e em que morre sempre alguém. Na banda sonora ouvimos dizer, “Porque é que o cinema sente necessidade da morte, se não a consegue mostrar? O cinema parece indissociável da morte, do morrer, do deixar de ser. A morte, podemos dizê-lo, é um axioma do cinema. Bazin chamava-lhe a mortalha da realidade.”
“Nenhuma investigação é inocente, o detective acaba sempre por descobrir algo sobre si próprio. De regresso à Argentina depois de vários anos em França, percorro os locais da minha adolescência cinéfila: cinemas de bairro que foram demolidos ou transformados em salas de jogo e em discotecas. Descubro também que Falconetti (a Joana d’Arc de Dreyer) e Le Vigan (o actor secundário mais genial dos anos 30) terminaram a sua vida na Argentina. No seu rasto, vi-me confrontado com o meu próprio caminho: ao fazer o trajecto inverso não estaria a viver a mesma miragem, partindo de novo do zero?” – Edgardo Cozarinsky
Os lugares são aquilo de que a ficção cinematográfica necessita para poder contar uma história. No seu estúdio, o cineasta instalou um monitor para os excertos, dispôs livros, cassetes de vídeo, um tabuleiro de xadrez, cópias de fotogramas e bilhetes postais que fazem surgir uma história enquanto a sua equipa de ajudantes lê, observa, manipula, propõe e pormenoriza. O comentário percorre os lugares: descreve ou reconstrói um fragmento, uma sequência: a cidade de When the City Sleeps (1956) de John Huston, o prédio e as escadas vazias de M (1931) de Fritz Lang, o campo de milho de North by Northwest (1959) de Alfred Hitchcock, a cabana de The Gold Rush (1925) de Charlie Chaplin, as ruas de Buñuel, as ruínas de Rossellini, a Nova Iorque de Raymond Depardon… lugares de acção, teatros indispensáveis para que a história aconteça, lugares imaginários ou ‘reais’, inscritos ou construídos. “Il n’y a lieu que le lieu.”
“Começamos por aqui” diz o cineasta, colocando a mão sob uma placa: Rue du premier film – Auguste et Louis Lumière, 1894. Eles fizeram o primeiro filme. Era um filme documental. Numa sala, o cineasta, rodeado pela sua equipa de rodagem, percorre excertos, citações e fotogramas, comanda as câmaras que mostram o seu dispositivo, e interroga a realidade dos (e nos) filmes e as teorias que os acompanham. De The River (1938), de Pare Lorentz, a fotos de Atget, aos excertos e imagens de Robert Flaherty, Robert Frank, Peter Nestler, Jean Vigo, Buñuel ou Huston, o filme é uma reflexão sobre o cinema documental em sete capítulos e um epílogo.
Sessão apresentada pela Associação Os Filhos de Lumière, incluindo a exibição de filmes realizados por alunos da Escola Secundária de Serpa resultantes do trabalho sobre a questão ‘porquê mexer a câmara?’; com Teresa Garcia e Pierre-Marie Goulet
André Dias, Daniel Ribeiro, Edgardo Cozarinsky, Frederik Lang, Hartmut Bitomsky, Inês Sapeta Dias, João Amaral Frazão, Manuela Sousa Tavares, Susana Sousa Dias e Sylvain George (Colaboração), Chris Wahl, José Manuel Costa, Nuno Lisboa, Regina Guimarães (Textos Originais), Carmo Lobo e José Maria Vieira Mendes (Traduções do alemão)
Lisboa, 1962. Pós-graduação em Estética e Filosofia da Arte, Universidade de Lisboa. Licenciatura em Artes Plásticas/Pintura, Universidade de Lisboa Curso de Cinema, Escola Superior de Teatro e Cinema. Docente na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.