A ecologia global encontra-se irreversivelmente afectada pela acção humana. Partir do fim implica olhar para o futuro a partir dos sintomas do presente. Mas o fim da natureza não se refere aqui necessariamente a uma projecção do apocalipse ou a um diagnóstico do antropoceno. O fim da natureza também pode ser entendido como a dissolução do mito da natureza separada da cultura – reconhecendo que todas as coisas fazem parte de uma entidade ecológica contínua. Colocando a possibilidade de uma ecologia das imagens num mundo saturado de imagens, o Doc’s Kingdom 2016 convida-nos para uma viagem em todas as direcções cardeais, com um grupo de cineastas cujo cinema propõe novos mapas para o uso e leitura das imagens no mundo de hoje.
“’Dar voz ao povo’ é explicitamente enunciado nas duas partes do díptico Diga-me, o que é a Ciência?, filmes encomendados pela Direcção Geral de Educação Permanente, que Hatherly transformou em objectos extremamente singulares. Ambos os filmes partem de duas perguntas insistentes, formuladas pela voz da própria Hatherly, cujo corpo se esconde atrás da câmara que carrega ao ombro: ‘o que é a ciência?’, ‘o que é a técnica?’. Em alternativa ao dirigismo da voz off, tão presente em tantos filmes desse período revolucionário, que assim procuravam evitar que se perdesse a ‘mensagem’, Hatherly trabalha quase exclusivamente ao nível do depoimento captado em directo, com os quais dialoga de modo exemplar.” (Joana Ascenção, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 26 de Julho de 2013)
A Mão Inteligente mostra 40 anos de arte visual de Ana Hatherly, que inclui poesia experimental, pintura, desenho e cinema. Neste filme, a artista revisita seu itinerário criativo.
Revolução é um filme excepcional que revela como a concepção lúdica da criação de Hatherly se desenvolve simultaneamente com uma dimensão ética e política extraordinária, assim se prolongando a todos os domínios. Como escreveu no prefácio do livro Um calculador de improbabilidades, “O experimentador, como experienciador, aproxima a arte da vida, assumindo a responsabilidade de uma subversão da ordem estabelecida, pela qual a criatividade se torna gesto revolucionário.” Revolução é um trabalho eminentemente revolucionário, que assim se junta a outras explorações artísticas, como os seus famosos cartazes “As Ruas de Lisboa”, realizados em 1977, em que Hatherly rasgava e roubava restos de cartazes das paredes das ruas da capital, ao mesmo tempo que os registava para o filme Revolução. (Joana Ascensão, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema)
O magnum opus de Tahimik, Why is Yellow the Middle of the Rainbow? é um filme-diário épico que abrange o período dos anos 1980. Embora cada um dos filmes de Tahimik seja único, este desafia a possibilidade de um resumo, simplesmente por causa da imensidão que cobre. Ao mesmo tempo que conta a história de uma família – férias no estrangeiro, projectos escolares, os primeiros passos das crianças – também serve como introdução à história e geografia filipina. Porém, o mais impressionante é a maneira como o filme passa perfeitamente do pessoal para o político, enquanto a câmara de Tahimik documenta os eventos que vão desde o assassinato de Benigno Acquino, até a queda de Marcos, e progride para furacões e terremotos. “Numa época de subida do nível do mar e economias em colapso, [o filme] mostra-nos como ficar furiosos com todas as injustiças do mundo, mas também como enfrentar essa injustiça com a maior alegria. Na verdade, existem poucos, se é que existe algum, filme como este … ” (Christopher Pavsek – Harvard Film Archive)
“A génese da Balada de Um Batráquio deu-se quando soube de um facto surpreendente – a tradição portuguesa de colocar sapos de cerâmica nas portas de restaurantes e outros espaços comerciais para afastar os ciganos. Por meio dessa minha história pessoal, queria chamar a atenção para uma tendência crescente de usar a crença e a superstição para ridicularizar outros seres humanos e mantê-los à distância.” – Leonor Teles
Uma viagem ao ‘telhado do mundo’, os Himalaias tibetanos, desencadeia uma série de reflexos sobre os diversos designs e funções estruturais dos telhados. Nos seus arquivos fílmicos, Kidlat Tahimik encontra um número surpreendente de fotos que mostram telhados e trabalhos de cobertura, começando com a cerimónia de consagração de uma cúpula numa igreja da Baviera, em Pesadelo Perfumado, passando por um relatório sobre a construção de sua própria cabana de bambu, em Hapao, até fotos de arranha-céus em todo o mundo. Telhados do mundo, uni-vos!, é o manifesto desta homenagem aos telhados sobre nossas cabeças, complementado pelo lema encorajador: “Nada a perder a não ser as fugas.” – Kidlat Tahimik
“Poda-me em Janeiro
Empa-me em Fevereiro
Cava-me em Março
Verás o que te faço.” (ditado popular)
O projeto contínuo de Myriam Lefkowitz, Walk, Hands, Eyes, examina a relação entre uma cidade e seus habitantes. Ao longo de uma hora de passeio em silêncio, participante e guia estabelecem uma relação de imersão com o meio através dos actos simples de caminhar, ver e tocar. Na pequena cidade ribeirinha de Arcos de Valdevez, os participantes do seminário Doc’s Kingdom orientaram-se em pares após um workshop prático oferecido pela coreógrafa.
A crise ecológica é uma crise política, económica e social. É também cinematográfica, pois o cinema coincide histórica- crítica- e descritivamente, com o desenvolvimento do Antropoceno. A Film, Reclaimed é uma conversa, um ensaio que lê a crise terrestre sob a influência, e com a ajuda, dos belos e terríveis filmes que a acompanharam. – Ana Vaz
Este filme ensaio começa com uma pergunta infantil sobre o que significa ‘o Ocidente’ para além da direção cardeal, partindo daí para traçar a sua integração na história e arquitetura do pós-guerra na República Federal da Alemanha. – Juliane Heinrich
Somos inundados com imagens. É impossível vê-las todas porque são demasiado abundantes. No passado ano foram produzidas mais imagens do que durante todo o século XX. É hora de pensar em formas ou estratégias que permitam olhar para estas imagens, em vez de simplesmente juntar à colecção. Essa estratégia poderia partir de um algoritmo de leitura, mas dada a instabilidade da internet, é necessário também produzir filmes, salvar algumas dessas imagens do esquecimento e arquivá-las. – Dominic Gagnon
“Filmando em Lisboa em busca das origens da nossa história colonial, encontrei cópias. Os brasileiros, os novos mundos fluentes em brilho, entretêm os portugueses com admiração e desconforto, as normas coloniais aplicadas e reaplicadas. A porcelana chinesa parece sinalizar a chegada de híbridos: os chineses vestidos como europeus, a empregada brasileira vestida como uma criada europeia do século XIX. A porcelana do século XV torna-se um ready-made reproduzível fazendo mesa para as novas colónias – uma vocação transatlântica. ‘Ouro novo’, significa dinheiro novo. Como um poema sem períodos, como um sopro sem respiração, a viagem parte para o leste e para o oeste, marcando ciclos de expansão na luta para encontrar o seu lugar, o seu assento à mesa.” – Ana Vaz
A linguagem é a chave do império. Enrique é o escravo de Fernão de Magalhães, que circunscreveu o globo. Além de dar banho a Magalhães todas as noites, Enrique é também tradutor das línguas filipinas para português e espanhol. O filme abre com uma caixa de papelão que contém rolos de filme a ser retirada do solo. Filmadas em 1980, e revelando a sua antiguidade, essas imagens contam a história da circunavegação. Magalhães morreu pouco antes de conclusão da viagem, mas autorizou que Enrique, agora por defeito o primeiro verdadeiro circum-navegador, se tornasse um homem livre. Enrique gravou as suas memórias da viagem em madeira, em esculturas que adornam o seu jardim. Balikbayan #1 tece a história oficial com a de Enrique, e ainda com a versão que Tahimik começou a filmar há 35 anos, em busca da verdade, à qual deu continuidade numa vila na província de Ifugao, em 2013. Os actores já não são os mesmos e Tahimik, que interpretou Enrique em 1980, ficou mais velho, assim como outros nasceram. Balikbayan # 1 é um filme amador, um épico extravagante, um estudo do colonialismo, um correctivo histórico e uma homenagem àquilo a que Tahimik chama de ‘Génio Indio’. (Berlinale, 2015)
“The Voyage Out toma o desastre tóxico em Fukushima como uma sinédoque do desastre ecológico iminente e da possibilidade de renovação. Apresenta uma etnografia do futuro, uma etnografia em todo o caso. Dois anos após o desastre tóxico em Fukushima, uma nova ilha emergiu no arquipélago de Ogasawara, no extremo sul do Japão. The Voyage Out representa, de forma onírica e experimental, o imaginário sensível destes dois lugares e a forma como compõem um mundo atravessado pelo espectro da destruição e da renovação.” Para o Doc’s Kingdom, Ana Vaz e Nuno da Luz apresentam uma primeira iteração pública deste projecto em curso, apenas algumas semanas após o regresso da sua primeira viagem ao Japão.
Directamente das pastas do seu computador portátil, Dominic Gagnon partilha uma série de clipes recolhidos da internet, reunidos para o segundo capítulo, Going South, de uma tetralogia imaginada, iniciada com Of the North (2015), em que este ‘cineasta sem câmara’ explora o mundo através da cultura de imagens online.
A história de família, de um pai cigano e de uma mãe não-cigana, inspira a realizadora a pesquisar o que teria sido sua vida se seu pai, assim como sua própria mãe não-convencional, não tivessem quebrado a tradição. Nesta viagem de auto-descoberta conhece Joaquina, uma jovem totalmente imersa na comunidade cigana, e que é um contraponto à experiência da realizadora.
Há Terra! é um encontro, uma caça, uma história diacrónica entre o olhar e o devir. Como num jogo, como numa perseguição, o filme erra entre personagem e terra, terra e personagem, predador e presa. – Ana Vaz
People’s Park é uma visão documental e ininterrupta – capturada num plano sequência extraordinariamente estável e fluido – da China contemporânea, ou pelo menos das centenas, talvez milhares, de pessoas aglomeradas num parque da cidade de Sichuan. Usando uma cadeira de rodas, uma câmara digital de gama baixa e um microfone amarrado ao braço da cadeira, os realizadores – e a Sra. Cohn que segurou a câmara enquanto Sniadecki empurrou a cadeira – fazem-nos mergulhar num afluente humano onde flutuamos e fluímos e, ocasionalmente, paralisamos, apenas para subir e ascender mais e mais e mais num final surpreendente e contagiante. – Manohla Dargis
É um grande dia. Quatro jovens indígenas deparam-se com duas caixas de cerveja, enquanto outro fica para trás, ouvindo R&B no telefone. Depois, tudo vai de mal a pior. Misturando histórias indígenas com preocupações modernas sobre a degradação ambiental e o abuso de substâncias, Windjarrameru conta a história de um grupo de jovens indígenas escondidos num pântano quimicamente contaminado, após serem falsamente acusados de roubar cerveja, enquanto os mineiros ao redor deles poluem as suas terras.
Enquanto um grupo de indígenas adultos discute se devem salvar as suas habitações estatais ou sua paisagem sagrada, os seus filhos estão em conflito tentando perceber de que forma as crenças ancestrais fazem sentido nas suas vidas contemporâneas. Ouvindo música nos seus ipods, caminhando pelas matas e navegando pelos mares, seguem os seus pais numa jornada para reconstituir a viagem do Sonho do Cão (Dog Dreaming). Ao longo do caminho, alguns ficam sem energia e os barcos ficam sem gasolina, e as crianças pressionam os seus pais e questionam-se entre si sobre a importância destas histórias e o seu sentido no contexto da noção ocidental de evolução, das paisagens sonoras do hip hop e das tecnologias de desenvolvimento agrícola. When the Dogs Talked mistura documentário e ficção para produzir um drama atento mas bem-humorado, sobre os obstáculos quotidianos da pobreza estrutural e racial, e sobre a dissonância entre narrativas culturais e estruturas sociais.
Salt(water) é baseado em eventos reais. Em 2009, alguns Karrabing navegaram até um dos seus territórios remotos no norte da Austrália. Metade desembarcou numa praia, a outra metade continuou costa abaixo. Quando o primeiro grupo voltou para a praia, o barco já não se avistava. Pouco antes de um enxame de mosquitos – vindo dos pântanos do interior – os alcançar, o barco materializou-se. Tinha ficado encalhado na costa, o motor recusando-se a arrancar. Cabos corroídos; antecessores zangados; capital racializado; ou Jesus: Salt é constituído por cinco filmes de dez minutos. Os filmes passam continuamente de um mapa de explicações para o seguinte, como se por uma porta mágica. Os personagens entram no barco num quintal, e seam do barco numa praia. Entram numa casa remota, e saem para a praça da igreja da cidade. Filmado com iPhones por membros da tribo Karrabing, Salt será exibido em três formatos – em cenário de ecrãs múltiplos; uma série online; e um filme.
Perfumed Nightmare “lembra-nos que a invenção, a insolência, o encantamento e até a inocência, ainda estão disponíveis para o cinema”, escreveu Susan Sontag. Devaneio e documentário cruzam-se enquanto o piloto de jeepney, Kidlat Tahimik, sonha com uma viagem à lua. A etnografia surreal de Tahimik encontra maravilhas e mistérios, tanto em casa, nas Filipinas, como na Europa, onde é guiado pela ambição. O crítico Gene Youngblood descreveu Perfumed Nightmare como “um filme bizarro e alucinatório cheio de imagens deslumbrantes e ideias estranhas. É real e surreal, poético e político, ingénuo e sábio, primitivo e supremamente realizado… um testemunho deslumbrante da liberdade da imaginação. ”
Conta-se que no ano de 1492, o primeiro navio europeu comandado por Cristóvão Colombo desembarcou na costa de Samaná, a actual República Dominicana, e foi recebido por uma chuva de flechas cuidadosamente traçadas pelos Taíno das Caraíbas. Actualmente, um lago salino com o nome do chefe Taíno Enriquillo sofre profundas mudanças ecossistémicas que levam à migração de espécies, à evacuação forçada e a um deserto de coral em expansão, revelando o passado geológico do lago. Tomando a própria câmara como uma flecha, um corpo estranho, Amérika: Bay of Arrows busca maneiras de animar, despertar, fazer vibrar novamente esse gesto no presente – flechas contra um perpétuo ‘céu em queda’.
Esta reviravolta altamente experimental sobre o documentário etnográfico visita a cidade de Yumen, na província de Gansu, no noroeste da China, uma comunidade outrora próspera e rica em petróleo, na década de 1980, que foi esgotada e abandonada. Impressionantemente filmado, Yumen conta a história desta cidade fantasma por meio de uma série de personagens errantes e vinhetas, inventivas nas quais até o espírito de Bruce Springsteen é convocado para comentar sobre um mundo em ruínas. Uma colaboração entre cineastas chineses e americanos, Yumen expande os limites da estética do documentário ao retratar o passado e o presente da China.
Myriam Lefkowitz (nascida em 1980, Paris, França, onde mora presentemente) concluiu o mestrado em História na Universidade Paris-Sorbonne e estudou dança em Nova York, principalmente com a coreógrafa/bailarina Lisa Nelson. Desde 2010, a sua pesquisa tem-se focado em questões de atenção e percepção, investigações que ela desenvolve por meio de diferentes dispositivos de imersão, que envolvem encontros directos entre espectador e performer. Em 2011, participou do mestrado de experimentação em Arte e Política, SPEAP, Science Po Paris, fundado por Bruno Latour. Em 2013, tornou-se parte do comité de ensino da SPEAP. É regularmente convidada para workshops e palestras pela Escola Nacional de Arquitetura de Versalhes; Three Uses of the Knife, Vilnius; Open School East, Londres; la HEAD, Génova; Royal Institute of Art, Estocolmo; L’ERG, Bruxelas; e o departamento de Dança da Universidade de Paris 8, St. Denis.