Ainda nas cinzas dum século que foi da política e do cinema, como pensar hoje as relações entre estes dois campos? Começando por evocar gestos seminais de uma época em que já tinham sido questionados radicalmente os termos dessa dicotomia (a viragem dos anos sessenta para setenta), avançamos depois para filmes recentes que nos ajudam a pensar o intervalo decorrido e a abertura de novos ciclos. Por um lado, obras em que pesa a agonia dum tempo – a política depois da política do século XX, a política depois da política. Por outro, explorações cinematográficas de territórios marcados pela memória, ou pela ruína desse tempo. Por outro ainda, novos libelos políticos directos que, num equilíbrio hoje raríssimo, se desenrolam também como um discurso sobre o uso da imagem. Algumas pistas, num programa que não se pretende sistematizador, antes é feito de interrogações parciais, de títulos que podem abrir fendas nos clichés que perduram. Ainda e sempre: o que é uma imagem política?
“Um ensaio polémico e ideológico sobre os acontecimentos dos últimos dez anos. São documentos retirados de jornais filmados e de curtas-metragens, e montados de modo a seguir uma linha cronológico-ideal, cujo significado é um acto de indignação contra a irrealidade do mundo burguês e a sua consequente irresponsabilidade histórica. Para documentar a presença de um mundo que, ao contrário do mundo burguês, conhece profundamente a realidade. A realidade, ou seja, um amor verdadeiro pela tradição que só a revolução pode trazer.” – Pier Paolo Pasolini
Uma obra-prima do movimento do Cinema Novo Brasileiro e o filme mais influente de Glauber Rocha (1938-1981), Terra em Transe é um espectáculo intenso, operático, que transmite um sentido real da violência e da irracionalidade que caracterizam a política eleitoral num país marcado pelo subdesenvolvimento. “Apesar de o estilo ser irregular, podem ver que a câmara está sempre posicionada como se se tratasse de um documentário”, disse Rocha. O protagonista é um jornalista-poeta que troca o seu meio elitista pela política radical, apenas para se desencantar com os seus novos camaradas, do mesmo modo que se havia desiludido com o que considerava ser a cobardia da classe intelectual.
Em J., Eduardo Escorel mostra a fragilidade da rede de protecção de direitos humanos a partir da história do líder comunitário da Favela Kelson, no Rio, que denunciou a acção criminosa da milícia no local.
Trajectória de Genivaldo, agricultor familiar da região semi-árida de Alagoas. Membro leigo da Igreja Católica, foi líder do Movimento Sem Terra e candidato a prefeito da sua cidade natal. Hoje, continua fiel à sua vocação de activista político, distante de igrejas, movimentos e partidos.
No mítico comboio transiberiano, no vagão da terceira classe, podem ovir-se todo o tipo de histórias. Pessoas de diversas nacionalidades juntam-se aos locais, trabalhadores, soldados, estudantes… todos partilham o mesmo tempo e o mesmo espaço… e ao longo da viagem, partilham histórias sobre as suas vidas. O filme é sobre uma dessas histórias, entre outras possíveis. Dois homens viajam no mesmo comboio, um soldado russo e um homem tchetcheno, com a sua família, a regressar da terra-mãe, com uma ligação em comum que desconhecem, a Tchetchénia. Uma guerra pela independência, por um território de que a Rússia não abdica, transforma todos os tchetchenos em soldados, logo à nascença.
Rússia, 2007, exactamente um ano antes das próximas eleições presidenciais. A oposição está decidida a agir e a tomar poder. As duas figuras centrais, Anatoly e Andrei, são revolucionários veteranos. Foram membros de uma organização política banida durante mais de dez anos. A política, no entanto, apenas serve de pano de fundo à acção principal, dando o ambiente em que existem os protagonistas. É uma história de orgulho, de traição, e do começo de uma vida nova.
Fragmentos de espaços e tempos, restos de épocas e locais onde apenas habitam memórias e fantasmas. Vestígios de coisas que o tempo, os elementos, a natureza, e a própria acção humana modificaram e modificam. Com o tempo tudo deixa de ser, transformando-se eventualmente numa outra coisa. Lugares que deixaram de fazer sentido, de ser necessários, de estar na moda. Lugares esquecidos, obsoletos, inóspitos, vazios. Não interessa aqui explicar porque foram criados e existiram, nem as razões porque se abandonaram ou foram transformados. Apenas se promove uma ideia, talvez poética, sobre algo que foi a parte da(s) história(s) deste país.
A notável exploração de Lee Ann Schmitt da paisagem californiana e do seu passado utiliza película de 16mm para documentar a história das cidades outrora em expansão, construídas e abandonadas pelas indústrias que se aproveitaram da sua criação. A Califórnia, um território vendido como uma terra em expansão, sem limite e de livre oportunidade, foi, na realidade, desde a sua formação, fracturada pela necessidade cruzada dos interesses privados e públicos. O filme associativo de Schmitt avança recorrendo a uma estrutura temporal livre – as grande indústrias do início do século XX (mineira, da madeira, do óleo), dão lugar às indústrias militares, à chegada das corporações multinacionais e à utilização das pequenas cidades como cidades-satélite das grandes metrópoles urbanas. Schmitt representa a ideologia do progresso e da expansão, e o sentimento tangível de assombração da perda da promessa americana. A ideia de uma ‘cidade da empresa’, mostra Schmitt, desenvolveu-se e mudou ao longo do tempo, mas no fundo as suas circunstâncias permanecem as mesmas; trata-se de assentamentos de serviço desolados em resultado de mudanças económicas; são, e serão sempre, quase exclusivamente varridos para o caixote do lixo da história.
Um só plano, a descrição de um momento, de uma paisagem, apreender num só gesto a memória de uma passagem, durante o tempo que Ella Fitzgerald demora a cantar ‘All My Life’.
“Recorrendo a justaposições de sombra e de movimento, este filme silencioso e surrealmente poético examina as mudanças subtis na luz e na paisagem de Nova Iorque. Hutton impõe ao filme a estética da fotografia e usa a duração da percepção de movimentos e iluminações como dispositivo estrutural.” (Bill Mortiz)
Depardon questiona-se sobre a impossibilidade de filmar e apreender uma cidade através do cinema. Filmou quatro minutos todos os dias durante dois meses.
Um estudo de um lutador de boxe num treino ritual e cerimonioso. O treino simboliza a revolução individual de cada um na sua vida e na tentativa de transformar as condições daqueles que o rodeiam; o lutador é um auto-proclamado ex-delinquente que fundou um ginásio para a juventude da sua comunidade.
O último filme da série é o mais singular na sua forma e conteúdo. Dedicado (e fortemente influenciado no seu tom pela morte) do pai do cineasta, esta peça urbana instável é um estudo de uma Nova Iorque expressionista no escurecer e na noite. No centro do filme está o músico e artista Marion Brown, cujo monólogo orgulhoso e cansado se funde com as imagens assombrosas de uma paisagem alienante.
“Uma fotografia é uma lembrança, uma memória. O cinema é sempre agora”, diz Van der Keuken. Numa pequena aldeia despovoada na região francesa de Aude, um casal de idosos confidencia à câmara do veraneante as suas memórias do passado: guerra, doença, morte… O filme é composto como uma colecção de imagens autónomas que, quando combinadas, formam o universo mental de Van der Keuken: a alegria familiar, fragmentos de alguns dos seus filmes anteriores, uma homenagem ao saxofonista Ben Webster, dois poemas pelos poetas contemporâneos Remco Campert e Lucebert, um retrato do seu avô que lhe ensinou fotografia quando tinha doze anos…
Realizado durante a rodagem do filme de Chantal Akerman From the Other Side, Fenz oferece uma visão da fronteira entre os Estados Unidos da América e o México enquanto falha desorientadora, um campo de força abstracto suspensa entre duas nações.
Um poema cinematográfico de lânguida beleza com observações poderosas da vida cubana captada em cenas de rua activas e em retratos íntimos. Filmado em Havana velha e central, sem espectáculo ou polémica, Fenz encontra a revolução na firme tenacidade de uma população presa por um passado orgulhoso, em fluxo rumo a um futuro não conhecido.
Inspirada por um encontro com o arquitecto brasileiro Oscar Niemeyer, a visão de Fenz de um bairro de favela na Rocinha, a maior favela permanente da América Latina, é uma metáfora para a revolução abandonada. As frequentes anomalias técnicas da câmara são momentos escolhidos em que esta comunidade invisível ‘vem à luz’ em lavagens e fugas brilhantes, iluminando a energia inquieta dos residentes em espaços de habitação inquietamente improvisados.
A história e a sua relação com o presente são contempladas através de eventos quotidianos, interligados com fragmentos da tradição mexicanas.
“Um noticiário televisivo em bruto de 1965, encontrado, reimpresso tal como foi encontrado (acho que foi num caixote do lixro na Canal Street, não me lembro), à excepção do volume aumentado na segunda metade. Muitos filmes são perfeitos se não lhes tocarmos, perfeitamente reveladores na sua forma in- ou semi-consciente. Gostava que mais material estivesse disponível no seu estado bruto, como fonte primária, material à consideração de qualquer um e deixado a outros nesse mesmo estado, provas não contaminadas pela apropriação artística compulsiva e mal-empregue, pela ‘montagem’, o ‘apontar’ propositado que rasga uma estrada a direito através da cine-selva, convencidos de que estamos a ir para algum lado e sempre a falhar o destino. Para o furo certeiro, precisamos do furo inteiro, ou nada menos que as pistas inteiras e sem reordenação. Ou, para um Museu de Found Footage ou canal por cabo, uma biblioteca, um museu de merda de dejectos reveladores acessíveis a todos aqueles talentosos que vêem/ouvem. Um paraíso selvagem a salvo do Entretenimento.” (Ken Jacobs)
Uma colaboração entre o cinema e a música que cria um testemunho sensorial sobre os ideais democráticos através da exploração da relação distinta entre imagem e som, recorrendo à imagética iconográfica norte-americana, à abstracção gráfica e a uma composição musical poderosa do inovador músico jazz Wadada Leo Smith.
Após um Dezembro de revolta por toda a Grécia, fomos passar 4 dias da segunda semana de 2009 a Atenas, tentar obter o que nos era negado pelos média. Por assim dizer, algo que não fosse confrontos de rua, montras partidas ou carros queimados. Encontrámos estudantes politizados, professores empenhados, sindicalistas corajosos, precários ‘pelas costuras’ e jornalistas revoltados. Lefteria – liberdade é o resultado dos encontros desses dias, e motivou longas discussões após a sua projecção em diversos contextos.
Um homem cobra no meio da multidão, aparece vindo do nada, procurando os rastros do vazio depois dos tumultos. Estamos no penúltimo dia dos confrontos contra o encontro G8 de 2007 e o Cobra, de bloqueio em bloqueio, chega ao fim da estrada da revolta. Quando existe a fobia da imagem, a revolução não é filmada…
Paris, cidade aberta. Vertigem das comemorações. Ruínas. Ventos. Marés. Jovens imigrantes Iraquianos, Afegãos, Iranianos erram pelas ruas, por entre a sopa dos pobres e os campos da sorte. Ao partir, colocam em causa a ordem das coisas e a sociedade burguesa. Emerge um movimento de emancipação, profundamente melancólico, elegíaco; redefinir o conceito de revolução por um novo conceito de História.
A raiva no coração. A direito. As vozes ao alto. Intervenção policial. Outubro de 2006. Um bairro em Paris insurge-se espontaneamente. E o eco do desespero e da cólera não igualam a injustiça que afecta os habitantes dia após dia. Gestus histórico que remete para as lutas populares mais belas, mais ténues, mais frágeis; escravos de Spartacus, insurgidos da Comuna, negros e latino-americanos.
Rimbaud/Genet/Buñuel/Rossellini/Pasolini. Adolescentes Argelinos sobrevivem num hangar em Ceuta, à espera de passar para a Europa. Sim. Há uma certa ideia da juventude. Da juventude como migração e das migrações como Primavera que emege em cada novo ano. A Primavera ou o despertar dos sexos, diria Pasolini, arte do encontro e do coração vagabundo, e que remete a Europa e a ordem estabelecida àquilo que são: velhos (postura de reclusão. Convervação de si. Medo). Nunca mais lhes poderão escapar!
No segundo filme de Sissako, dois amantes procuram terminar a sua relação impossível durante uma última noite de Outubro em Moscovo. Filmado em Moscovo e Paris, Outubro transmite um sentimento contemporâneo e nostálgico.
Um documentário e um road movie que detalha a busca do realizador para encontrar Baribanga, um amigo Angolano que conhece um dia na Rússia. Sissako viaja por Angola tendo apenas uma velha fotografia como ajuda. Pára para perguntar às pessoas se viram o seu amigo e, ao fazê-lo, cria uma retrato da antiga colónia Portuguesa, um Estado devastado por décadas de conflito civil, no rescaldo da independência.
Primeiras imagens de um filme em curso sobre as políticas de migração na Europa e sobre as mobilizações sociais. Primeiros fragmentos sobre a situação das pessoas migrantes em Calais.
I. Niggerwood (Je brûle comme il faut) Calais, cidade desolada. ‘Everybody knows!’. Brancura de um manto de neve que cobre a cidade. Sombras negras e tutelares, cruzes e Beffroi, que a dominam. Fogos escarlates que a envolvem e a queimam. Figuras e rostos de pessoas que vêm de longe. Párias. Variação sobre paisagens políticas calcinadas e infernais: os corpos-pretos. II. Ballad for a child (On ne te tueras pas plus que si tu étais cadavre) Calais, cidade desolada. ‘Everybody knows!’. Evocação: num pequeno bosque, a ‘selva’, um homem que vem de longe, de um médio oriente em guerra, é assassinado. Foi em Dezembro de 2008. E é a um mundo inteiro, político, que se fará entregar a alma, que entrega a alma. Revolução: passa um homem que vem de longe. E as suas palavras, vestígios e aquilo que dele sobrevive, como um canto, vêm de mais longe ainda. Dos abismos, do esquecimento, do mar e dos desertos, das orlas infinitas. Operam, minoritárias, uma estáse crítica das realidades míticas e maiortiárias: vida nua, estado de excepção… ‘Everybody knows!’ Um homem que vem de longe passa, como um novo Orfeu, político, negro e revoltado. Um homem impossível que nunca mais nada nem ninguém poderá deter… III. Je me suis armé contre la justice (Burn ! Burn ! Burn !) (Resumo em processo de escrita.) IV. Le livre des damnés (La vie française, le sentier de l’honneur!) Como um círculo infernal. Variação sobre a traição e a negação, a curpidela do renegado como medalha, os ‘fundos de pensão’ como futuro, a partir do livro ‘Lettres à ceux qui sont pannés du col Mao au Rotary’ e Guy Hocquenghem (Acrescentaremos “… et à la cour Barkozy…”), e dos filmes de Lionel Soukaz e de ou com Guy Hocquenghem.
Notas para um filme proposto, que nunca seria concluído. Combina habilmente três tipos diferentes de material fílmico. (1) Imagens documentais filmadas na Tanzânia, com a voz de Pasolini a comentar as imagens de um modo etnográfico ou a explicar as suas intenções para adaptar a Oresteia de Ésquilo num cenário africano contemporâneo. Estes temas fundem-se na busca dos rostos e locais que serviriam esse propósito. (2) Uma entrevista com estudantes africanos da Universidade de Roma. Pasolini procura ouvir as suas opiniões sobre a pertinência da comparação que estabelece entre a instituição da democracia Grega em Atenas e a independência recentemente adquirida de muitos estados Africanos. (3) Uma sessão de jazz de 12 minutos com Gato Barbieri, onde os músicos interpretam o sonho profético de Cassandra acompanhando os cantores Yvonne Murray e Archi Savage.
Um tribunal está reunido numa pequena aldeia em África, os juízes com as perucas e os arguentes sérios presidem a uma audiência de cabras e miúdos que guincham, mas não há arguidos e queixosos vulgares nesta alegoria. Aqui, o acusador é a sociedade Africana, e os acusados são nada mais nada menos que o Banco Mundial e outras instituições internacionais, levadas a julgamento por inúmeros crimes, pelo patrocínio à exploração do mundo e à sua pilhagem. Advogados de acusação e testemunhas (interpretados por artistas conhecidos e por intelectuais) oferecem críticas devastadoras dos efeitos reais dos pacotes de desenvolvimento e da ‘economia global’, enquanto os advogados de defesa ajustam as suas perucas e refutam a culpa. Entretanto, entre discursos retóricos e discussões, a vida prossegue no pátio, enquanto Sissako, de forma inteligente, mistura a sua alegoria Brechtiana encenada com a vida constante da realidade africana.
Sessão apresentada pela Associação Os Filhos de Lumière, incluindo a exibição de filmes realizados por alunos da Escola Secundária de Serpa; com Teresa Garcia e Pierre-Marie Goulet.
“Dois adolescentes, demasiado jovens para saberem usar uma espingarda, percorrem os pântanos em busca de caça. Zangam-se, separam-se, e um deles enterra-se na lama. Alertado pelos gritos deste, o outro parte em busca de ajusta que, no meio de grande confusão, acaba por se concretizar.” (François Ramase)